Páginas

domingo, 11 de maio de 2014

Crônica leve para um domingo leve

A vitória dos passivos.

           
Há muito tempo não fumo mais. Mas o distinto aí fuma, seja cigarro, charuto, cachimbo ou cigarro de palha? E a gentil senhora ou senhorita, conforme, dá suas pitadas com freqüência? Caso positivo, é certo que não conseguem tomar uns destilados ou fermentados, na agradável celebração da amizade que só um bar proporcionar, sem se fazerem acompanhar de umas profundíssimas tragadas estonteantes e acalentadoras. Nem passar sem aquele deliciosíssimo ritual pós-almoço ou jantar do café-cigarro-licor-mais-café-mais-cigarro-mais-licor... que, segundo notório lobista tupiniquim, é justamente o momento mais propício para falar com objetividade e clareza e fechar um negócio vantajoso para todas as partes - menos para o contribuinte, não se pode agradar a todos. Conseguem? Claro que não.
Condoído de vossa sorte, lhes afirmo que, graças à vigilância e à defesa dos mais elevados preceitos morais de que estão imbuídos os mui valerosos legisladores Brasil afora, os amáveis leitores que responderam sim a todas as perguntas acima, principalmente os de São Paulo, serão obrigados a fazer uma escolha mais torturante que a de Sofia: ou bem bebem ou bem fumam, as duas coisa ao mesmo tempo nem pensar, porque no que o suplicante for flagrado deleitando-se com uma bebidinha numa mão e um inocente cigarrinho na outra, jogam-lhe os rigores da lei pelo meio dos cornos e uma multa destamanho, daquelas de retirar o leite da boca das crianças, que é pra ele aprender a respeitar os assim chamados direitos individuais e começar a adquirir um pouco de temperança, temor a Deus e, segundo alguns especialistas, uma cor muito rosada, uns quilos a mais, um aspecto bonachão e um mau humor que vou lhes contar.
            A essa altura do campeonato, os não fumantes empedernidos, principalmente os que largaram o saudável vício indagorinha mesmo e se transformaram, cristãos-novos que ora são, nos mais firmes combatentes dessa verdadeira cruzada que há de salvar de uma tacada só pulmões e almas, hão de estar comemorando mais essa vitória das forças do bem contra as hordas de satã, sujeitinho, como se sabe, que se utiliza de instrumentos os mais solertes para conquistar adeptos e solapar os alicerces sobre os quais se assentam a moral, os bons costumes, a família, a propriedade privada, a pátria e, vez em quando, uma boa negociata. Esses, dizia eu antes de enveredar por tortuosos caminhos, eis que a mente humana é cheia de invencionices, devem estar experimentando uma indescritível sensação de júbilo e exclamando a plenos pulmões: vencemos o vício.
Venceram. Venceram este vício, sim. Só que se esquecem de uma coisinha bem simples: o vento que venta lá venta cá. Quem é capaz de em sã consciência acreditar que essa cruzada contra o vício vai parar no cigarro. E se de repente os mesmos “cientistas” que inventaram o tal do fumante passivo resolverem que o bafo de álcool é altamente pernicioso para aqueles que não bebem e estão no mesmo ambiente, criando assim mais uma “verdade absoluta”, a do bêbado passivo, e com isso alimentar mais uma cruzada, desta vez contra um inocente choppinho ou whisquinho ou vinhozinho que, graças à vigilância moral, será enquadrado como vício e terá seu consumo proibido em lugares públicos, aí incluídos os bares e restaurantes, hein? Como é que fica? E o cheiro de alho? E os queijos Roquefort, Camembert, Gorgonzola e afins? Já que estamos falando dos direitos individuais, um sujeito pode muito bem alegar que o cheiro do Gorgonzola do vizinho está invadindo as suas sensíveis narinas e provocando um mal maior que espinhela caída, que não vai faltar cientista para desenvolver uma teoria a embasar mais essa frescura. E tome legislação.
E faça-se um projeto de lei proibindo o alho, os queijos, os molhos de pimenta, os molhos vinagrete, os flambados em geral, o mau hálito de alguns garçons, a emanação singela das axilas do vizinho da mesa ao lado pouco chegado a uma desodorização, o arroto de satisfação, o palitar garbosamente os dentes em busca daquele fiapo de picanha que teima em desafiar a capacidade de contorcionismo da língua humana, o tirar os sapatos debaixo da mesa para dar um descanso aos pés... e por aí vai, que a capacidade do ser humano para sentir-se incomodado por qualquer coisa só tende a ganhar força. Faça-se um projeto de lei, dizia eu, faça-se que, do jeito que coisa vai, os nossos legislativos aprovam no ato. E assim criar-se-á uma legião de passivos a comandar o mundo em nome de suas muito particulares idiossincrasias pseudocientíficas, gostos pessoais e alergias no atacado e no varejo.
Eu, por exemplo, já me apresso a escrever ao meu Deputado sugerindo-lhe elaborar projeto de lei que proíba o uso do cominho em lugares públicos, principalmente em bares e restaurantes. Motivo? Ora, detesto cominho, precisa mais?

Marcelo Coutelo

   

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Só serão aceitos comentários identificados por nome e email do comentarista.